terça-feira, 26 de maio de 2015

Cheiro

Cheiro. Particular. Íntimo. Cheiro não é apenas perfume. Cheiro é pele, suor, fragrâncias e sentimentos. Tem gente que tem cheiro de felicidade. Que estranho seria se pudéssemos trocar de cheiros; certamente eu faria um escambo, o meu cheiro de fascínio pelo cheiro de felicidade daquele homem da noite anterior.

Certa manhã, -parafraseando Kafka na cara de pau mesmo- acordei de sonhos intranquilos. Uma intranquilidade fruto de um sono leve, embalado pelo cheiro alheio que exalava de mim. Meu sonho não me pertencia, na medida em que, nele, eu não me habitava inteiramente. O homem que deixara seu cheiro em mim, na noite anterior, me adentrava em sonho de forma peculiar e quase literal. Cada poro meu respirava e engolia, para si, seu cheiro e seus pedaços. Por cada poro ele injetava em mim as mais puras partículas de felicidade, como se felicidade fosse uma fórmula superconcentrada que pudesse ser comprada na farmácia da esquina. A felicidade se mostrava simples.

O sonho, esplêndido em sua intranquilidade, deu lugar a instantes de uma calma matinal enquanto eu me mantinha estirada, sozinha, em minha cama. Ah, aquele cheiro que não consigo descrever! Era um resquício da noite anterior, uma ponte para boas memórias de todas as outras noites que passamos juntos. Minha pele, momentaneamente, exalava não a mim, mas a ele.

Poucos instantes se passaram e a intranquilidade logo voltara, ao passo que, possessiva, eu aspirava por um olfato superdesenvolvido; aspirava sentir aquele cheiro, agora leve, de forma intensa e mais duradoura; eu lutava contra a minha normalidade olfativa e contra o tempo, quando um segundo durava exatamente um segundo, e, dentro de, no máximo poucas horas, roubariam de mim aquele aroma daquele homem. O tempo não pararia e eu lutava, em vão, para ser eterna possuidora daquele cheiro que não era meu.

Falhei. Não havia contra o que lutar, era uma batalha perdida. Mantive-me quieta, imóvel em posição fetal. Aproveitei, derrotada, cada segundo até que a minha pele voltasse a carregar, por inteira, o meu próprio aroma.

Chegou ao fim. Inconformada eu exalava apenas a mim mesma.

Com a partida do cheiro da felicidade, me restou apenas eternizá-lo em minhas palavras e esperar por aquele momento em que minha pele sagaz poderá roubá-lo novamente. 

Confesso, já próxima ao fim das linhas, que aquele não foi um devaneio fruto de um cheiro de uma noite só; foi obra, mesmo que piegas, do amor construído. Aquele cheiro não surgiu o como o protótipo da felicidade, ao contrário, mesmo que naturalmente, ele foi moldado até se transformar, de fato, na minha felicidade.

Quanto aos momentos de inquietude, esses se repetem a cada encontro e desencontro. Enquanto houver felicidade, sonhos intraquilos  e apego ao cheiro do outro, haverá, para nós, muito amor.

Aquele cheiro se fez felicidade. O cheiro e o tempo. O homem no tempo e o cheiro no homem. A gente se fez felicidade. A gente no tempo e o homem em mim. 

Ainda sim grito alto: Cheiro, és ingrato enquanto passageiro; És um malandro com suas reiteradas idas e vindas!

Agora, já sem o cheiro do meu homem, bebo uma dose de cachaça e fumo o meu cigarro; o álcool e a nicotina me presenteiam agora com o nosso gosto, que mistura o sabor do fascínio com o da felicidade.

Que comece a busca por todos os sentidos da felicidade!

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