sábado, 25 de abril de 2015

Disfarce!


Estava deitada sobre um sofá cama de couro marrom; o sofá que, certamente, já conhecia cada curva minha. Senti um respirar vindo do corpo colado ao meu. Era o homem que dormia ao meu lado. Ele e seu respirar pesado e desajeitado. Um respirar penoso sob todos aqueles cachos que lhe caíam no rosto. Quieta, apenas com os olhos atentos e o corpo inerte, eu o observei.

Observei seus jeitos e trejeitos mais íntimos, aqueles involuntários que o sono trata de entregar. Meu toque clamou pelo seu corpo. Com cuidado afaguei a parte de trás de seus cabelos, revelando-se uma das poucas pintas que carregava no corpo, uma singela e discreta marca na nuca. Sorri e deixei que os cabelos caíssem novamente sobre sua pele.

Sem querer acordá-lo me mantive apenas deitada ao seu lado, inerte de corpo, mas efervescente em pensamentos de admiração que saltavam para fora de mim em forma de sorriso. Carregava comigo um desejo de perenidade, um desejo de que tudo permanecesse perfeito como até então tinha sido construído. Naquela noite, me peguei com um medo descomunal de perda; fruto de uma teia de assombrações e ligações entre falas e memórias do que já havia ficado pra trás. Um medo meramente pautado em suposições.

Sem ter muito o que fazer, pensativa com meus medos, anseios e angústias, foquei o olhar na porta negra que dava de frente para o sofá. Estava entreaberta. Num momento de delírio vi uma luz azul passar pela fresta aberta. Ela veio, aos poucos, adentrando a sala até se concentrar em forma circular na lateral do sofá cama no qual eu me encontrava. A luz, que começou azul, ganhou um tom intensamente claro. Me ofuscou os olhos e, ao conseguir abri-los novamente, uma imagem tinha ganhado corpo ali. Em pé. Ao meu lado. Eu, que não entendi nada fiquei apática.

Era uma figura de homem, parecia um santo, com sandálias de Jesus e vestes como aquelas que cobrem as imagens nas igrejas; uma espécie de alta costura do clero camuflada num modelo simplista e atemporal. Mas o meu santo carregava consigo um cigarro e puxou para si a cadeira que ficava próxima ao sofá. Assentou-se, cruzou as pernas e, reclamando do cansaço que as sandálias lhe causaram, tragou seu cigarro.

_Pois então... começou a falar enquanto baforava a fumaça. _ Não precisa se assustar, tô aqui pra te ajudar! Tava passando por essas bandas e senti cheiro de angústia misturada com amor. Sim, os sentimentos tem cheiros e, puta que pariu, amor misturado com angústia fede pra caralho. Sim, santos também falam palavrões, mas o cigarro é segredo! Mas deixe-me apresentar, sou o santo que protege aqueles que fazem uso de calmantes, ansiolíticos e os psicóticos no geral. Alguns me chamam de Santo do Prozac, mas pode me chamar como quiser.

Continuei apática, sem chamá-lo de absolutamente nada. Apenas ouvia o que o barbudo hippongo teletransportado pela luz azul tinha pra dizer.
_ Fique com o amor e abandone a angústia. É sério, joga fora essa porra toda de teorizar sobre o que ficou pra trás, de questionar demais, acredite na pele ao seu lado. A pele não mente! Deixe de ser mulherzinha e jamais se esqueça do cigarro pós coito! Não vou me alongar, afinal de contas, não sou o santo da auto ajuda.

O cigarro do Sr. Prozac já havia acabado. Ele se levantou, sentou ao meu lado e me lascou um beijo ainda com gosto de tabaco e me soltou uma última frase: “A gente pode brincar, mas você tem que disfarçar!”. Ao abrir os olhos ele havia desaparecido. Tentei entender aquela cena bizarra. Não deu.

Novamente deitei na quietude e, num surto de sensatez, percebi que eu estava, na verdade, acordada dentro do meu próprio sonho. Lutei para acordar. Uma. Duas. Três vezes. Na quarta tentativa consegui ser bruscamente expelida para o real. De fato eu havia acordado. Com os olhos realmente abertos encarei novamente aquele corpo. Aquele respirar. Aqueles cachos. Aquela personificação do que seria um sonho realmente bom.

Sorri um sorriso involuntário. Sorri ao sentir o amor jorrando pelos meus poros. E, novamente me aconcheguei junto àquele corpo. Agora aqueles cachos também caíam sobre mim. E, ali, eu quis ficar por toda a eternidade, sob o acalento da pele quente e sob as leves cócegas que os fios causavam nas minhas costas nuas.

No fundo, o santo era eu. O acalento para as minhas angústias disfarçadas sob a alta costura do clero. Quanta heresia! Que disfarce mais insólito!

Disfarce. Será essa a nova ordem?! Ordem?! E lá existe ordem no meu caos? Pensei.

Não preciso de disfarces. Concluí.

Um comentário:

  1. Adorei o Santo do Prozac! hahaha! Muito bem escrito, senti toda essa cena, o quarto, o cheiro, a conversa, o cigarro, o beijo! Amei!!! Fica a dica do Santo, escolho o amor! ;)

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